Antologia de textos com cães dentro.

quinta-feira, 27 de março de 2008

XXXII

Um cão vadio vagabundeia.
Que há-de fazer um cão vadio?
Traz algum osso na ideia?
Rói-o o estômago vazio?
Onde irá ele achar um osso?
Do osso à ideia é um fio.
Da ideia ao osso há um fosso.

Armindo Rodrigues
Lisboa Próxima e Distante (in Obra Poética VI)
1972

Oferecido por
Rui Almeida.

CÃOLIMERO


quarta-feira, 26 de março de 2008

Cãozinho

Vi um pincher num parque
que não queria parar de tremelicar
ou talvez quisesse mas não pudesse
ou talvez pudesse mas não soubesse
que fazer senão tremelicar.

Judith Herzberg
O que resta do dia
2008

Oferecido por manuel a. domingos.

terça-feira, 25 de março de 2008

CLEMENT NÉMIROVSKY

Numa certa tarde de Inverno, encontrava-se em sua casa a beber chá, na mais doce e aprazível das salas de estar, sob a luz amigável de uma janela, comodamente sentado à lareira, na companhia do seu fiel perdigueiro, Clement Némirovsky. Encontrava-se o nosso bom homem, dizíamos, nestas benignas circunstâncias, quando sucedeu o mais infeliz, o mais inoportuno, o mais cruel, o mais despropositado e o mais desagradável dos acidentes.
De facto, o traiçoeiro destino não podia ter imaginado nada mais impertinente, mais aborrecido, mais indigesto e mais destrutivo da paz doméstica e do bom humor de Némirovsky. Num segundo apenas, o seu rosto foi passando de espavorido para atemorizado, de atemorizado para varado, de varado para embranquecido*, de embranquecido para outra coisa qualquer que não sou capaz de descrever, e dessa outra coisa qualquer para outra ainda mais espantosa.
O cão, vendo o dono em tal estado de sobressalto, pediu-lhe para que se acalmasse, invocando os efeitos negativos que a situação podia representar para a sua saúde. E não tendo obtido qualquer sinal de melhoria, sentiu-se na obrigação de aplicar duas fortes bofetadas na cara do dono, de maneira a despertá-lo daquele sufoco consternado em que se encontrava.
Ora, muito me agradaria poder dizer que o par de bofetadas surtiu o efeito desejado. Mas infelizmente a situação era de facto desesperada e o cão não só não foi bem sucedido, como ainda teve que levar a cabo outras tentativas, tais como despejar uma garrafa de rum pelas goelas do dono e dar-lhe trinta e três palmadinhas nas costas.
Bom, voltando ao início, e para não manter mais tempo a expectativa do leitor a respeito do acontecimento que deixou Némirovsky subitamente sem fala, branco, aterrado, amedrontado, horrorizado, varado, atónito, perplexo, assustado e, no mínimo, banzado, devo dizer que tanto por consideração pela sensibilidade do leitor como por se tratar de algo profundamente desagradável para a harmonia das coisas, prefiro não escrever mais nada.
* É preciso observar que o rosto de Clement Némirovsky era já de si dos mais pálidos.

Rui Manuel Amaral
Caravana
Angelus Novus
2008

quarta-feira, 19 de março de 2008

A famosa rã saltadora

(excerto)

Smiley também tinha um bull-dog, olhava-se para ele e parecia não valer meio tostão furado. Banalíssimo. Dir-se-ia só servir para andar por aí, à coca para roubar o que pudesse. Mas mal se apostava nele, o cão ficava logo outro. A queixada esticava como a proa de um navio, os dentes brilhavam como navalhas nuas. O outro cão poderia morder-lhe, desafiá-lo, persegui-lo, atirá-lo ao ar duas vezes ou três que Andrew Jackson – era o nome do animal – não se importava. Até ficava contente, como se não quisesse outra coisa. Na maior.
Então é que as apostas subiam em flecha, duplicavam, triplicavam, quadruplicavam.
E de repente o cão ia-se ao outro, filava-lhe uma pata traseira e não a largava nem por nada. Quer dizer, ele não dava dentadas, não senhor. Limitava-se a abocanhar o rival e ficaria assim um ano se fosse preciso, até o outro se dar por vencido.
Smiley nunca perdeu dinheiro com o Andrew, até ao dia em que lhe apareceu pela frente um cão sem patas de trás, tinham-lhas cortado com uma serra circular. Depois dos preparativos do costume e das apostas todas feitas, Andrew Jackson preparou-se para filar o seu naco favorito do adversário. Só então percebeu que o tinham aldrabado, que o outro cão se estava positivamente a rir dele. Ficou meio apalermado, de goela aberta, nem queria acreditar. Baixou, por assim dizer, os ombros. Desistiu de lutar. Limitava-se a olhar para o dono, como que a dizer-lhe ter ficado com o coração em fanicos e que a culpa era toda de Smiley por não haver topado que ao inimigo faltavam as patas traseiras, no fundo o melhor trunfo de Andrew Jackson em qualquer combate.
Ainda deu uns passos, a coxear, e depois deitou-se e morreu. Um bom cão, aquele cão. Se tem aguentado, acabaria por ser famoso. Tinha qualidades para isso. Há que reconhecer-lhe uma boa dose de génio e, embora traído pelas circunstâncias, é absurdo não admitir que um cão tem que ter um talento muito especial para brigar daquela maneira.
Sinto-me sempre triste quando penso nesse último combate e na forma como aquilo acabou.

Mark Twain
A famosa rã saltadora
Tradução de João Alfacinha da Silva
Fenda, 1999

Oferecido por Rui Almeida.

sexta-feira, 14 de março de 2008

CHABLIS

A minha mulher quer um cão. Ela já tem uma criança. A criança tem quase dois anos. A minha mulher diz que a criança quer um cão.
A minha mulher está há muito tempo à espera de um cão. Tive de ser eu a dizer-lhe que ela não o poderia ter. Mas agora a criança quer um cão, diz a minha mulher. Isto até pode ser verdade. A criança é muito chegada à minha mulher. Andam juntas o tempo todo, agarram-se, apertam-se com força. Eu pergunto à criança, que é uma rapariga, “És a menina de quem? És a menina do papá?” A Criança diz, “mamã”, e não se fica por aí, di-lo repetidamente, “mamã, mamã, mamã.” Eu não vejo por que razão hei-de comprar um cão de cem dólares para o raio daquela criança.
A raça de cão que a criança quer, diz a minha mulher, é um Cairn Terrier. Esta raça de cão, diz a minha mulher, é Presbiteriana tal como ela e a criança. No ano passado a criança era Baptista – ou seja, ela frequentou o programa inteiro para mães da Igreja Baptista, duas vezes por semana. Este ano é Presbiteriana porque os Presbiterianos têm mais baloiços e escorregões, e outras coisas assim. Eu acho isso uma enorme falta de vergonha e disse-lho. A minha mulher foi uma Presbiteriana legítima durante toda a vida e diz que isso a autoriza a agir assim; quando era uma criança ela costumava frequentar a Igreja Presbiteriana em Evannsville, Illinois. Eu não ia à igreja porque eu era uma ovelha negra. Havia cinco filhos na minha família e, entre nós homens, íamos fazendo girar o estatuto de ovelha negra, o mais velho seria a ovelha negra durante uns tempos, enquanto passava pelo seu período de embriaguez ou o que quer que fosse, e só depois, à medida que ia envelhecendo, e tendo talvez arranjando um emprego ou estando até cumprir serviço militar, tornava-se finalmente numa ovelha branca quando cassasse e tivesse um neto. A minha irmã nunca foi uma ovelha negra porque era uma rapariga.
A nossa criança é uma criança encantadora. Durante anos disse à minha mulher que ela jamais poderia ter uma criança porque isso seria muito caro. Mas elas derrotam-nos sempre por exaustão. Elas são bastante boas a derrotar-nos por exaustão, mesmo que isso possa demorar anos, como foi o caso. Agora ando com a criança ao colo e abraço-a sempre que posso. O nome dela é Joanna. Ela veste um macacão da Oshkosh e diz “não”, “biberão”, “fora” e “mamã”. Ela é a coisa mais adorável quando está molhada, quando acaba de tomar banho e o seu cabelo louro está encharcado, embrulhada numa toalha bege. Por vezes quando está a ver televisão ela esquece-se por completo que também estamos lá. Podemos ficar só a olhar para ela. Quando ela está a ver televisão parece muda. Gosto mais dela quando está molhada.
Esta coisa do cão está a transformar-se na grande questão. Eu disse à minha mulher, “Bom, já tiveste a criança, precisaremos também agora do diabo de um cão?”. O cão irá provavelmente morder alguém ou até perder-se. Já me estou a ver a percorrer o nosso bairro inteiro a perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho?” “Como se chama o cão?”, irão todos perguntar, e eu fitá-los-ei com toda frieza e direi, “Michael” É assim que ela o quer chamar, Michael. É um nome estúpido para um cão e lá terei de procurar por esse cão, possivelmente raivoso, e perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho? Michael?” É o suficiente para nos pormos a pensar em divórcio.
O que é que a criança poderá fazer com o cão que não o possa fazer comigo? Brincar livre e desenfreadamente? Eu consigo fazê-lo. Levei-a ao parque infantil da escola. Era domingo, o local estava deserto, e brincámos de uma forma livre e desenfreada. Eu corri, e ela cambaleou atrás de mim a um bom ritmo. Eu amparava-a sempre que deslizava no escorregão. Ela percorreu todo o caminho interior de um tubo de cimento que existia no parque. Ela apanhou uma pena e ficou horas a contemplá-la. Eu estava preocupado que aquela fosse uma pena contaminada mas ela não a meteu à boca. Depois corremos ainda mais pelo campo pelado e abrasivo de softball e através das arcadas que ligam as salas de aula de madeira temporárias, que estão a perder a sua pintura amarela, ao edifício principal. Num destes dias, a Joanna irá frequentar esta escola, e isto se eu permanecer no mesmo emprego.
Fui ver alguns cães no Pets-A-Plenty, que tem pássaros, roedores, répteis e cães, todos em óptima condição. Eles mostraram-me os Cairn Terriers. “Eles têm os seus livros de orações?”, perguntei. A funcionária não entendia o que é que eu estava para ali a dizer. Os Cairn Terriers poderiam rondar os 295 cada, com papéis. Eu comecei por perguntar se por acaso eles não teriam algum filho ilegítimo a preços mais baixos, mas pude ver que isso seria inútil, e cheguei mesmo à conclusão de que a mulher já não ia com a minha cara.
Mas, o que é que há de errado comigo? Porque é que eu não sou uma pessoa mais natural, tal como a minha mulher pretende que o seja? Eu permaneço acordado, desde manhã cedo, postado à minha secretária que está no segundo piso da casa. A secretária está de frente para a rua. Às cinco e meia da manhã, os corredores já estão lá fora, individualmente ou em pares, a correr por uma saúde de ferro. Eu estou a beberricar um copo de Chablis Gallo com uma pedra de gelo, a fumar, a preocupar-me. Preocupo-me com a possibilidade de a criança cravar uma faca de cozinha numa tomada eléctrica enquanto estiver molhada. Apliquei aquelas pequenas fichas de protecção de plástico em todas as tomadas, mas ela aprendeu a retirá-las. Já verifiquei os lápis de cera. Mas eles fizeram-nos de forma a tornar a sua ingestão inofensiva – eu telefonei para sede na Pennsylvania. Ela pode comer uma caixa inteira de lápis de cera que nada lhe acontece. Se eu não comprar os novos pneus para o meu carro, posso comprar o cão.
Lembro-me do tempo, há cerca de trinta anos, quando, na estrada de Beaumont, atirei com o Buick da mãe do Herman para um campo de milho. Havia outro carro que seguia na minha faixa, não bati nele e ele também não me bateu. Lembro-me de guinar o carro para a direita, seguindo para baixo para a valeta, atravessando a vedação, detendo-me apenas no campo de milho e saí do carro para acordar o Herman para ambos verificarmos como tinham ficado os felizes bêbados do outro carro, na valeta do outro lado da estrada. Isso aconteceu quando eu era uma ovelha negra, anos e anos atrás. Aquilo foi realizado com toda a destreza, penso eu. Levanto-me, felicito-me pela memória e vou lá dentro para dar uma espreitadela à criança.

Donald Bartheleme, Forty Stories, “Chablis”. New York: G.P. Putnam’s Sons, 1st edition, 1987, 256 pp. [tradução: AMC, Março/2008]
(Este conto foi originalmente publicado na revista The New Yorker, de 12 de Dezembro de 1983, p. 49 [Vol. 59 Issue 43])

Tradução de André Moura e Cunha.

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