Estiveste connosco onze anos.
Uma noite voltámos:
estavas estendido frente ao portão,
o focinho no pó da estrada,
as patas já frias, o dorso
quente ainda.
Agora estás todo
nesta cova que te abrimos.
Mas os onze anos
da tua humilde vida,
o gemer
sempre que alguém partia,
o sofrer de alegria
sempre que alguém regressava
- e à noitinha
se alguém
por uma tristeza sua
chorava
tu lambias-lhe as mãos:
olhavas para ele
e lambias-lhe as mãos -
oh, esses onze anos
do teu mudo amor
está tudo aqui
sob esta terra
sob esta chuva
cruel?
Agonizavas
na gravilha húmida:
levantaste ainda
uma pata - que tremia.
Agora ninguém te protege
do frio.
Já não te podemos chamar.
Já não te podemos dar
nada.
Só as folhas mortas
caem neste recanto
do relvado.
Pensar que algo mais resta
de ti
é impossível:
e por isso a nossa absurda
dor aumenta.
Antonia Pozzi
Antologia de textos com cães dentro.
domingo, 7 de outubro de 2012
sábado, 11 de agosto de 2012
NOVELA CURTA
O meu amigo Moreira mandou uma vez construir, num quintal velho que tinha, uma casa elegante para um cão. Encarregou d'isso um mestre de obras, que, atraído pela estranheza do assunto e pela suposta loucura do criador do proposito, construiu uma espécie de chalet digno de ser pago, sem sobras, por alto preço.
Quando a casa para o cão estava pronta, o Moreira compareceu e aprovou. Elogiou o mestre de obras, e foi-se embora, meditando.
Dias depois, quando o mestre de obras apareceu com a conta, o Moreira pediu-lhe que o acompanhasse ao quintal velho. Chegados ali, disse-lhe com enternecimento, apontando para a casa do cão.
- Olhe, mestre, meta a conta ali dentro. Ela é que é o cão.
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
sábado, 28 de julho de 2012
SEXTA, SÁBADO
Agora os rapazes com lanternas correm
pelo meio da rua, analisam-nos o rosto à
luz ofuscante; as feridas abrem
ligeiramente, uma bola cinzenta cai da janela
transida. Há poeira, glóbulos de lama no escuro patamar.
**
A cidade, músculo avariado. Pastores conduzem
mulheres, carrinhos e cestos de groselhas. Crianças tenras
volteiam na praça. Estou esfomeado e eles estão imóveis
(multiplicai-vos,
façam de mim súbito vosso).
**
Despreocupado, recostado na
rede. Cemitério judeu. Habitantes
do outeiro: cão, vaca e toupeira. Loiça (fonte de
alegria). A estrela conduz os rebanhos um a um.
Marcin Sendecki, in Parcelas
pelo meio da rua, analisam-nos o rosto à
luz ofuscante; as feridas abrem
ligeiramente, uma bola cinzenta cai da janela
transida. Há poeira, glóbulos de lama no escuro patamar.
**
A cidade, músculo avariado. Pastores conduzem
mulheres, carrinhos e cestos de groselhas. Crianças tenras
volteiam na praça. Estou esfomeado e eles estão imóveis
(multiplicai-vos,
façam de mim súbito vosso).
**
Despreocupado, recostado na
rede. Cemitério judeu. Habitantes
do outeiro: cão, vaca e toupeira. Loiça (fonte de
alegria). A estrela conduz os rebanhos um a um.
Marcin Sendecki, in Parcelas
sábado, 14 de julho de 2012
D. MARIA MANUELA, SEU MARIDO E SEU CÃES
sempre a vi soterrada
em malhas de lã à volta do pescoço
óculos de lentes pesadas
com olhos de horizontes distorcidos
uma vez experimentei-os aqueles escuros numa praia
e tudo me pareceu metido num filme
mudo a sépia com as pessoas
à velocidade da manivela
só mais tarde soube que (ela)
estava com a sombra
cada vez mais próxima. agora
tece tapetes de arraiolos
a um dedo de distância dos olhos
as mãos trabalham com a destreza
de quem pensa na vida que levou
faz viagens teve cinco filhos tem um marido
cheio de silêncios e a companhia
de um cão velho e uma cadela que substituiu
um outro rafeiro que morreu
baba-se com os netos mas chora muito
com os ataques epilépticos da cadela
por pouco era feliz
Fernando Machado Silva, in Primeira Viagem
em malhas de lã à volta do pescoço
óculos de lentes pesadas
com olhos de horizontes distorcidos
uma vez experimentei-os aqueles escuros numa praia
e tudo me pareceu metido num filme
mudo a sépia com as pessoas
à velocidade da manivela
só mais tarde soube que (ela)
estava com a sombra
cada vez mais próxima. agora
tece tapetes de arraiolos
a um dedo de distância dos olhos
as mãos trabalham com a destreza
de quem pensa na vida que levou
faz viagens teve cinco filhos tem um marido
cheio de silêncios e a companhia
de um cão velho e uma cadela que substituiu
um outro rafeiro que morreu
baba-se com os netos mas chora muito
com os ataques epilépticos da cadela
por pouco era feliz
Fernando Machado Silva, in Primeira Viagem
A CASA O CÃO A CAMA OS COPOS
perdoa-me o enrolar da língua
mas a solidão tem destas coisas
e disparates seguem-se
uns aos outros
sobre o corpo abandonado
e a canção diz
é impossível ser feliz sozinho
e com o meu treino engano-te
preparando uma despedida
fácil. podes sair, levar
as tuas coisas, eu e o nosso cão
resolvemos tudo pelos cantos da casa
revelando-nos a nossa verdadeira cara
um ao outro e voltando
a escondê-la quando regressares
Fernando Machado Silva, in Primeira Viagem
mas a solidão tem destas coisas
e disparates seguem-se
uns aos outros
sobre o corpo abandonado
e a canção diz
é impossível ser feliz sozinho
e com o meu treino engano-te
preparando uma despedida
fácil. podes sair, levar
as tuas coisas, eu e o nosso cão
resolvemos tudo pelos cantos da casa
revelando-nos a nossa verdadeira cara
um ao outro e voltando
a escondê-la quando regressares
Fernando Machado Silva, in Primeira Viagem
terça-feira, 10 de julho de 2012
O CÃO QUE ME TINHA
Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber que ia.
Tomava as minhas feridas,
a tristeza que eu pudesse ter
e sofria dela como eu nem sofria.
Trocava de mal trocando-lhe as voltas.
Punha a coleira ao pescoço
e levava-me a passear
como se eu fosse o dono.
E à noite dormia no chão
ou então fingia. Eu acordava
com um servo aos pés da cama,
armava-me em amo
e era ele que me tinha.
Exímio no silêncio
e no uso das armas
com que me defendia
de todos e também de mim:
a linha veloz do pêlo luzidio,
o frémito da língua,
o focinho em arco para a escuta.
Era um cão que me tinha
e uma tarde de verão
atirei-lhe um osso gostoso
antes de o deixar no canil.
Rosa Alice Branco, in O Gado do Senhor
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber que ia.
Tomava as minhas feridas,
a tristeza que eu pudesse ter
e sofria dela como eu nem sofria.
Trocava de mal trocando-lhe as voltas.
Punha a coleira ao pescoço
e levava-me a passear
como se eu fosse o dono.
E à noite dormia no chão
ou então fingia. Eu acordava
com um servo aos pés da cama,
armava-me em amo
e era ele que me tinha.
Exímio no silêncio
e no uso das armas
com que me defendia
de todos e também de mim:
a linha veloz do pêlo luzidio,
o frémito da língua,
o focinho em arco para a escuta.
Era um cão que me tinha
e uma tarde de verão
atirei-lhe um osso gostoso
antes de o deixar no canil.
Rosa Alice Branco, in O Gado do Senhor
sexta-feira, 6 de julho de 2012
VELHO CACHORRO
O mundo estava na infância.
O vento desenrolava
sua paciente fábula.
O vento velho cachorro
lambia o quadril do sono.
Pé de pilão nossa sombra
junto à sombra da palavra.
O mundo não é candeia
nem vaso de flor a alma.
Carlos Nejar, Um País O Coração
O vento desenrolava
sua paciente fábula.
O vento velho cachorro
lambia o quadril do sono.
Pé de pilão nossa sombra
junto à sombra da palavra.
O mundo não é candeia
nem vaso de flor a alma.
Carlos Nejar, Um País O Coração
CLARIDADE
O barulho de existir:
um cão
dentro de mim.
Atravesso
como a um pátio
o barulho de existir.
Carlos Nejar, Árvore do Mundo
um cão
dentro de mim.
Atravesso
como a um pátio
o barulho de existir.
Carlos Nejar, Árvore do Mundo
domingo, 27 de maio de 2012
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