Antologia de textos com cães dentro.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

era um galgo muito magro e retraído

É nojento apanhar caca do chão com a mão envolta
num plástico azul — A civilização não obriga a cão mas à lei e
à higiene que é a ciência da absoluta limpeza — No limite o planeta
composto apenas de ferro ou carbono ou dois elementos imiscíveis
dois géneros imiscíveis dois deuses homogéneos com universos opacos
A vida seria mais uniforme ou inexistente mas o ferro não enferrujaria
ao sorriso das estátuas não corresponderia desejo nem amor nem nada
do que conspurca o optimismo quando é calmo e hegemónico — Pensar
o sujo oposto ao limpo leva-nos a agarrar a caca do cão enquanto o cão
exerce sobre nós a tolerância doméstica das minorias protegidas — Sujo
é o que se desperdiçou e mistura no limpo — O cão que caga limpa-se
o dono com obstipação limpa-se — o poeta que pensa o limite do sujo
também limpa o universo que deverá preparar-se para a perfeição
Apanhar caca em troca da convivialidade de cão erudita e estável
bem separada do amor palavroso por quem caga no mesmo lugar
que nós — mas não pensa a poesia e o sujo com o nosso optimismo


Nuno Félix da Costa, in O Desfazer das Coisas e As Coisas já Desfeitas, Companhia das Ilhas, Novembro de 2015, p. 145.

CULPA


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